Samuel, em hebraico: “seu nome é Deus”, é o nome dado ao chefe de Israel, no tempo das confederações tribais e o processo do surgimento da monarquia. Formava um só livro, originariamente. Ele foi dividido em dois na época da LXX – II a.C. e pela Vulgata. A divisão foi introduzida no texto hebraico em 1444.
A importância de uma época sem profetas e profetisas
1) Recordando a história pela tradição oral:
É no processo de resistência a este sistema de dominação que surge o povo de Israel. Diversos grupos de pastores, camponeses e gente marginalizada (hapirus) de Canaã, e pessoas escravizadas no Egito conseguem libertar-se da dura opressão imposta a eles pelos reis cananeus e pelo Faraó. Estas pessoas vão organizar-se em associações de famílias ocupando várias áreas nas montanhas de Canaã. Com mentes e corpos marcados pelas estruturas opressoras cananeias e egípcias, visando eliminar as grandes desigualdades sociais que haviam sofrido, vão desenvolver seus laços de solidariedade e princípios éticos procurando constituir sociedades sem concentração de terras, de poder e de riqueza. Disputando espaços e controles de áreas com as cidades-estados cananeias, formam aldeias libertas e organizam-se em tribos, sem reis. Nas associações familiares e nas tribos deveria predominar as relações de solidariedade, ajuda mútua e a justiça social, uma sociedade de defesa e promoção da vida para todos. Estas organizações sociais que buscavam viver em liberdade e em solidariedade são o núcleo inicial do povo de Israel. Os arqueólogos encontraram um monumento erigido em +1220 a.C pelo faraó Mernephtah, em que aparece o nome “Israel” indicando um povo que vivia na região montanhosa de Canaã (L. Dietrisch).
2) O tribalismo em nome de uma divindade:
Nas tribos de Israel, formadas por gente de diversas origens, as relações são estabelecidas a partir da luta contra a opressão e pela liberdade e da experiência de uma divindade – mais tarde invocada pelo nome de יהוה “Javé” - como uma presença libertadora, uma força aliada nesta luta. Testemunham que conquistaram a liberdade porque um Deus lutou ao lado delas contra os opressores. O nome “Israel” significa: “é Deus como quem luta” (Gn 32,29; 35,10). Porém estes diversos grupos possuíam diferentes tradições religiosas. Nas experiências fundantes, para os pastores nômades este Deus é Elohim, o Deus dos pais, o Deus dos antepassados (Ex 3,6; cf. Gn 31,53), ou El Shaddai, o Deus das estepes, ou das montanhas (Ex 6,3, cf. Gn 17,1). Para os escravos é o Deus dos hebreus (Ex 5,3; 3,18; 7,16), sendo que aqui “hebreu” não tem ainda a conotação racial de descendente de Abraão que terá no pós-exílio, mas é a forma hebraica da palavra hapiru, que designa a condição social de gente marginalizada. E ainda, para os camponeses cananeus este Deus é El, o Deus supremo do panteão cananeu (veja Nm 23,22; 24,8; cf. Gn 33,20; 35,7). Mesmo que muitas destas divindades fossem, como no caso de El, as divindades oficiais de reis e cidades estado de Canaã, no processo de resistência e de libertação estes camponeses, escravos e pastores afirmaram o rosto libertador destes Deuses.
3) O projeto do Êxodo:
São as histórias contadas por estes hebreus, escravos, pastores, e camponeses que constituem as tradições mais antigas que irão dar origem à Bíblia. Elas que formam o cerne mais profundo do livro do Êxodo. Assim, por detrás da história que conhecemos como “o êxodo” na verdade existem várias experiências de libertação: o êxodo dos hebreus e escravos, o êxodo dos camponeses cananeus e o êxodo dos pastores. O povo de Israel e o centro de sua fé brotam destas diversas experiências de libertação. Porém hoje na Bíblia estas histórias aparecem sintetizadas na grande narrativa do Êxodo. Pois a história dos escravos que se libertaram da opressão do faraó tornou-se o paradigma, o modelo bíblico para falar de opressão e libertação. Talvez pelo caráter espetacular da vitória do grupo de pessoas escravizadas que enfrentou face a face às forças do faraó e conseguiu libertar-se do coração do império opressor, ou por desdobramentos políticos posteriores, a história do grupo de Moisés acabou sobrepondo-se às outras.
4) A monarquia:
Mas nos cem anos seguintes, entre 1050-950 a.C., o aumento da produção camponesa, propiciado pela introdução do ferro e do boi na agricultura, levará donos de bois, líderes políticos, guerreiros, e sacerdotes seduzidos pelos apelos do comércio internacional a esboçarem tentativas de acumulação de riquezas e poder (Jz 8,24-26; 9,1-4; 10,3-4; 1Sm 2,12-16). O desenvolvimento destas contradições internas, somado aos ataques de inimigos externos (1Sm 11,1-2; 13,19-21), enfraqueceram os fundamentos igualitários da sociedade tribal israelita. Deste modo criam-se as condições para o surgimento de uma elite que concentra poder econômico, político e militar e institui a monarquia (1Sm 9,1; 25,2).
Com a monarquia configura-se uma sociedade em que uns poucos têm muito mais poder e riqueza do que a maior parte da população. A monarquia constitui um grupo social dominante que controla um exército e se mantém explorando o trabalho e apropriando-se de grande parte da produção das famílias camponesas, direcionando-a para a rede do comércio internacional. As famílias camponesas além de serem levadas a entregar parte de sua produção, também devem entregar suas filhas e filhos para trabalhar nas obras e guerras decididas pelo rei e seus aliados (veja 1Sm 8,11-17). Surge um pequeno grupo muito rico e poderoso e aparece na sociedade grande número de pessoas pobres e sem terras e sem casas, sem os meios necessários para uma vida digna (1Sm 22,2; 25,10). Esse processo começou timidamente com Saul (+1050 a.C.) e consolidou-se com Salomão (+950 a.C.).
5) A consolidação da monarquia:
A consolidação da monarquia demorou mais ou menos 100 anos. Esse tempo indica que houve muita resistência. A resistência das vilas camponesas, fiéis a Javé o Deus da defesa da vida, esteve sempre presente. E se manifesta fortemente já no final da vida de Salomão, quando as tribos do norte denunciam a monarquia de Salomão como um “fardo pesado” e “dura escravidão” (1Rs 12,4); não aceitam a imposição de tributos (1Rs 4,7-19; 5,2-4.6-8) e trabalhos forçados (1Rs 5,27-28; 11,28), e por volta de 930 a.C., formam o país de Israel, independente de Judá (1Rs 12,18). A resistência camponesa ressoará forte também na voz dos profetas, seja no reino de Judá, dirigido pelos descendentes de Davi, seja no nascente reino de Israel.
שמואל (Livro de Samuel)
O livro contém a seguinte estrutura:
1Sm 1-7: Samuel
1-3: nascimento de Samuel,
4-6: a história da Arca,
7: Vitória dos Filisteus, Samuel como juiz.
1Sm 8-15: Samuel e Saul
8-11: Eleição de Saul,
12: Despedida de Samuel,
13-14: Vitória de Saul,
15: Rejeição de Saul.
1Sm 16-31: Saul e Davi
16: Unção de Davi e sua presença na corte,
17: Davi e Golias,
18-20: Davi na corte,
21-27: Davi, o fora da lei,
28: Saul em Endor,
29-30: Davi com os Filisteus,
31: Derrota e morte de Saul.
2Sm 1-8: Davi, rei de Israel e Judá
1: Morte de Saul,
2-4: Davi, rei em Hebron,
5: Davi, rei de Israel, vitórias sobre os filisteus, tomada de Jerusalém,
6: Arca introduzida em Jerusalém,
7: Oráculo de Natã,
8: listas das guerras e vitórias de Davi.
2Sm 9-20: A História da família de Davi
9: A casa de Saul,
10-12: Vitória sobre os amonitas e o adultério de Davi,
13-18: Rebelião de Absalão,
19: O retorno de Davi,
20: Rebelião de Seba.
2Sm 21-24: Apêndices
21,1-15: Vingança executada sobre a casa de Saul,
21,16-22: Feitos heroicos de Davi contra os filisteus,
22: Salmo de Davi,
23,1-7: últimas palavras de Davi,
23,8-39: Heróis de Davi, o censo e a peste,
24: Recenseamento e peste.
Observações gerais:
É evidente que o livro de Samuel é resultado de um grande esforço de compilação dos anais históricos ocorridos entre o período tribal e o surgimento da monarquia. Os fatos compilados aconteceram entre os anos de 1040 a 971. Foi um tempo decisivo na história de Israel. Acontece uma reviravolta nas relações entre as tribos rumo à monarquia. De uma nação formada por inúmeras tribos, onde o poder era descentralizado, ocorre o surgimento da figura do rei, com poderes absolutos e centralizador. A vida da nação esta nas mãos de uma só pessoa: o Rei. Este passa a ser o gerenciador ou responsável da economia, política, cultura, ideologia e religião.
As compilações das várias partes do livro têm por mãos responsáveis os deuteronomistas. Eles, por volta do ano 586 a 538 a.C, oferecem um toque redacional ao livro. Formam uma verdadeira “colcha de retalhos”. Podemos dividir o livro em quatro grandes etapas ou ciclos redacionais:
1. 1Sm 1-7: centrado na figura de Samuel e da Arca da Aliança.
2. 1Sm 8-15: centrado na figura de Saul, primeiro rei de Israel.
3. 1Sm 16 a 2Sm1, relatos da ascensão de Davi ao trono de Israel.
4. 2Sm 2-24, apresentando e unificação do estado sob Davi e alguns apêndices.
A passagem do sistema tribal para a monarquia não é historicamente muito clara. Além disso, não se tem ideia muito precisa do que significava a realeza nos primeiros tempos de Israel. Os estudiosos distinguem várias versões sobre o surgimento da monarquia. Aqui, vamos destacar uma corrente desfavorável ao monarca. Vejamos o texto de 1Sm 8. Na bíblia a autoridade central sempre é ambígua: ela pode ajudar o plano de Deus, mas pode arruinar os sinais do reino. Pode libertar, como pode oprimir e explorar o povo. A presença da autoridade política, sempre implica uma tensão entre interesses conflitivos. Basta analisar o texto de 1Sm 9,1-10,16; 11. É um texto favorável ao monarca. (STORNIOLO, Ivo e BALANCIN, Euclides M. Como ler os livros de Samuel: a função da autoridade. São Paulo, Paulinas, 1991, pp. 18-19.
Ler e refletir 1Sm 8: em fim, surge o projeto da monarquia contra o tribalismo
A Monarquia:
Atos de Samuel:
1. Samuel é apresentado como sendo idoso,
2. Seus herdeiros não seguem a sua conduta:
:וְלֹֽא־הָלְכ֤וּ בָנָיו֙ )בִּדְרָכָו] (בִּדְרָכָ֔יו[ וַיִּטּ֖וּ[F1] אַחֲרֵ֣י הַבָּ֑צַע[F2] וַיִּ֙קְחוּ־שֹׁ֔חַד[F3] וַיַּטּ֖וּ מִשְׁפָּֽט[F4] ׃
3.. Foi juiz em Israel por muito tempo (1Sm 12,2),
4. Unificou todas as tribos contra um inimigo comum: os filisteus (1Sm 7,7 [F5] -12),
5. Homem apresentado como bom e justo [F6] ,
6. Fiel à lei de Javé, jamais apoiaria o surgimento da monarquia (1Sm 8),
7. Saul é um jovem guerreiro, foi aclamado como juiz diante da ameaça dos amonitas (1Sm 11,5-11). Mas suas vitórias despertaram no povo o desejo de ter um rei (monarca, semelhante as outras nações, 1Sm 11,12-15),
8. Samuel acolhe Saul como rei de Israel, mas ele não deixa de ter poder em suas mãos.
Profecia e monarquia:
Já vimos que o surgimento da monarquia tem causas internas e externas:
1) Internas:
Técnicas agrícolas (arado, ferro, boi, cisternas, juntas de boi).
Aldeias produzem mais que o necessário. As sobras dos produtos são vendidas. Antigas cidades são agora reconstruídas e transformadas em centros comerciais (Jz 9).
Tribos mais fortes do que outras. No Norte, Siquém, torna-se um poderoso centro comercial. Siquém é polo de atração para as tribos do Norte. No sul, em torno de Hebron centralizam-se as tribos do Sul. Este episódio pode ser comprovado com o surgimento do rei Davi. Primeiro, sagrado no Sul, depois no Norte (2Sm 2,4; 2Sm 5,1-5).
2) Externas:
Invasão dos Filisteus, em meados de 1050 a.C. Estabeleceram-se na região litorânea, na região de Gaza. Possuidores da técnica de guerra (espadas, carros, homens treinados para a guerra/exército).
Guerrearam contra as tribos. Em situação de risco, as montanhas foram o único refúgio e lugar de segurança. A planície estava ocupada, resta a região montanhosa (1Sm 4,1-11). A Arca da Aliança acabou caindo nas mãos dos Filisteus (1Sm 4,10-11).
Ocorre a necessidade de possuir um sistema de governo semelhante ao povo vizinho: monarquia. Edom, Moab e Amon eram pequenos reinos circunvizinhos de Israel.
A identificação do rei é clara: “para que ele nos governe como acontece com todas as outras nações” (1Sm 8,5-20 [F7] ).
Há lugar para profecia na monarquia (Ler 1Sm 12,1-25 [F8] )
O livro de Samuel é claro ao mostrar o conflito entre o antigo regime tribal e os riscos de tudo e todos estarem sob as ordens reais.
Samuel era um líder muito respeitado. Uniu todas as tribos do Norte ao Sul, de Dã até Bersabéia (1Sm 3,20). Sua honradez e temor a Javé eram por demais reconhecidas e não havia necessidade de instaurar um novo sistema de governo (1Sm 7,15-16; 12,3-4).
Os herdeiros de Samuel não seguem a sua conduta (1Sm 8,1-13). Samuel unge Saul para ser juiz (fazer guerras e unir e dar segurança diante do inimigo (1Sm 9,16-17).
Saul [F9] era excelente guerreiro e diante dos riscos aposta em tropas treinadas para guarnições (1Sm 13,2). Escolhe uma cidade fortificada como centro das manobras bélicas (1Sm 22,6). Eis os primeiros passos de um futuro rei (1Sm 11,15).
Samuel ainda vive, mas não tem forças para se opor aos planos e ações de Saul. Ao invés de fazer guerra de defesa opta por guerra de conquista, pilhagem, mortes e saques (1Sm 15,10-35 = crítica a Saul, por parte de Samuel).
Relacionamento entre profeta e rei:
O monarca opta por defender o comércio, as cidades, a especulação e a venda das terras, o culto oficial centralizado nos templos e polos comerciais (Javé ou Baal). Política de acumulação com base no escravagismo, impostos, taxas, saques e pilhagem, armas e exércitos.
Os profetas optam pela fidelidade a Javé, o único e eterno rei. Defendes as tribos, as aldeias, a roça, a propriedade da família, os pequenos santuários rurais, o culto familiar, o trabalho livre. Tudo isso em nome da aliança feita com Javé.
Na verdade monarca e profeta andam juntos num mesmo contexto. Davi, Salomão, Jeroboão, Acab. De um outro lado, Samuel, Elias, Amós e tantos outros. Os profetas surgem para instaurar o projeto de Paz, segundo a vontade de Javé.
[F1]נטה, inclinar
[F2]Ganho, interesse, suborno
[F3]Presente,
[F4]Justiça,
[F5] Medo dos filisteus
[F6] Ism 3,21: Silo, lugar onde Javé havia lhe falado.
[F7] // Dt 17,14-15. 1Sm 7,8, e 12 garantem a transição entre duas épocas na história de Israel, a época dos juízes e a dos Reis. Samuel é descrito pelo Dtr como o último (juiz-salvador” de Israel (7,2-14); porém o fracasso da judicatura de seus filhos, que são corrompidos (8,1-3), leva o povo a pedir a Samuel um rei (8,4-5, conforme o rei que já havia sido predito em Dt 17,14-15. Na sequencia do capitulo 8 (v. 6-22), em 10,17-27 (com probabilidade dtr.
[F8] Se a realeza é tolerada, o é tão somente sob a condição de que o rei seja escolhido pelo próprio YHWH (Dt 17,14-15 e 1Sm 10,17-27), e que ele seja inteiramente submetido a YHWH e a seu povo (12,14-15). No mesmo sentido, I Samuel 15 e 16,1-13, que é preciso atribuir aos dtr’s.
[F9] Saul será o rei rejeitado, e Davi um rei segundo o “coração de IHWH” (16,7). Dois tipos de reis oponentes: um inteiramente submisso à vontade divina, outro em revolta (15,23). Por fim, a oração de Davi, 2Sm 7, a oração de Davi (7,18-29) - é provavelmente um acréscimo tardio – é um texto central na História de Davi.
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Notas/ITESP – Lit. Deuteronomista – frizzo - Abr/2017
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